Sadin, E. “Vivemos uma ruptura civilizatória”. Entrevista com Éric Sadin. A entrevista é de Rubén H. Ríos, publicada por Perfil, 08-05-2022. Instituto Humanitas Unisinos. In
https://www.ihu.unisinos.br/categorias/618409-vivemos-uma-ruptura-civilizatoria-entrevista-com-eric-sadin
Rui Alexandre Grácio [2024]
«Vivemos um momento de extrema saturação em relação a uma ordem política e econômica que vigora há cerca de meio século e que potencializa em cada indivíduo a intenção determinada de não continuar sofrendo nenhuma situação de braços cruzados. Esse estado espiritual se vê estimulado pelo fato de nos vermos equipados com uma aparelhagem técnica que parece abrir novas margens de ação.»
«Essa tensão é explosiva a partir do momento em que contribui para que nos imaginemos como sujeitos autárquicos, inclinados sobre nossos instrumentos, que se presume que nos oferecem um domínio maior das coisas e que, ao mesmo tempo, liberam a expressão permanente de nossos ressentimentos. Esta seria “a era do indivíduo tirânico”: o advento de uma condição civilizatória inédita que nos mostra a abolição progressiva de qualquer limiar comum para abrir passagem a um formigueiro de seres que acreditam que foram a tal ponto enganados e traídos que se remetem unicamente à sua percepção das coisas.»
«Por suas feridas, e em um momento da história em que sente o peso, década após década, de um grande acúmulo de experiências que culminaram em decepção, a maioria dos indivíduos não acredita mais em nenhum projeto coletivo. Nesse sentido, as iras atuais bebem menos nas causas ideológicas do que nos afetos subjetivos, que se expressam pelo smartphone na mão e a pretensão de, agora em diante, negar a quem quer que seja que fale em nosso nome.
Esse novo ethos redistribui o baralho do pacto que tradicionalmente opera entre governantes e governados para fazer emergir o que chamo de “estado de ingovernabilidade permanente”, que, na minha opinião, é o que caracteriza de forma mais apropriada a época em que vivemos.»
«A utopia da emancipação através das redes é uma fábula. Quem poderia acreditar que, por meio de trocas em fóruns online, iríamos nos libertar de nossas alienações? Entretanto, logo se tornou um mito: imaginar que, por usar essas novas técnicas, poderíamos ter mais autonomia e valorizar melhor nosso “capital humano”.»
«E para este ponto favoreceram a constituição de um imaginário que se alimenta de uma ilusão de autossuficiência que só pode levar a um distanciamento entre o conjunto comum e a pessoa, concebido dentro de uma esfera própria e situada à margem. Disso segue a experiência de uma cisão que é vivida subjetivamente, mas em escala ampla e compartilhada. É um fenômeno que contribui para instaurar o que chamo de “isolamento coletivo”.»
«Vivemos o momento de uma grande revanche, habilitada pelas redes sociais, de indivíduos que não querem mais sofrer nada em silêncio. O #Metoo é exatamente isso: há uma ordem injusta que persiste sob a forma de uma norma implícita e que, então, pode ser exposta graças às novas ferramentas. O drama é que após aqueles momentos saudáveis de mobilização, vimos como pessoas eram denunciadas com argumentos ad hominem. Isto provoca fenômenos de manada, pessoas indignadas e que sentem a obrigação de demonstrar empatia, compaixão.»
«É preciso compreender até que ponto essa crise sanitária agravou nosso estado de “isolamento coletivo” pelo fato do advento de uma telessociabilidade cada vez mais integral, de uma sociedade “sem contato” na qual a tela se tornou a principal instância de encontro entre os seres humanos. É isto o que promete o metaverso, viver um número cada vez maior de sequências da vida cotidiana por meio de capacetes de realidade virtual e avatares, e corremos o risco de que em breve nos seja imposto, sem que tenha ocorrido qualquer debate público. Vivemos uma ruptura civilizacional e todas as suas consequências representarão desafios sociais e políticos cruciais desta década.»
Última atualização em 9 de abril de 2025