Big%20Data

Han, B-C. (2016). No enxame. Reflexões sobre o digital. Relógio D’Água.

Destaques

Telmo Alexandre Ferreira [2024]

As novas massas são o enxame digital:
“As novas massas são o enxame digital. Este manifesta propriedades que o distinguem radicalmente das formações clássicas dos muitos - das formações de massa.
O enxame digital não é uma massa porque é intrinsecamente desprovido de alma ou de espírito. A alma congrega e unifica. O enxame individual compõe-se de indivíduos isolados” (p. 22)

Enxame - o lugar onde nos aglomeramos sem formar comunidade:
“O mundo do homem digital mostra (…) uma topologia completamente diferente (das massas). São-lhe estranhos lugares como os estádios desportivos ou os anfiteatros - quer dizer, os lugares de reunião de massas. Os habitantes digitais da rede não se reúnem. Falta-lhes a intimidade da reunião, capaz de produzir um nós. Formam uma concentração sem reunião, uma multiplicidade sem interioridade, sem alma ou sem espírito.” (p. 23)

Transparência como valor último numa ditadura do senso comum:
“Sob o imperativo da transparência, as opiniões dissidentes ou as ideias inabituais não chegam sequer a ser verbalizadas. Escasseia a ousadia. A imposição de transparência engendra uma forte coação e conformismo. E, do mesmo modo que a videovigilância permanente, faz com que nos sintamos vigiados. Tal é o seu efeito pan-ótico. Em última instância, estamos perante uma unificação da comunicação, ou uma repetição do mesmo.” (p.30)  

Ameaça à nossa liberdade de ação pela aliança entre a máquina digital e máquina capital:
“Não terão construído a máquina digital e a máquina do capital uma aliança terrível, que aniquila a nossa liberdade de ação?
Não viveremos hoje um tempo do não-morto, em que se tornou impossível não só o nascer, mas também o morrer? A natalidade constitui o fundamento do pensamento político, enquanto a mortalidade é o facto que impele o pensamento metafísico. A era digital do não-morto, deste ponto de vista, não é política nem metafísica.” (p.44)

“O homem do futuro já não terá necessidade de mãos. Nada terá de manejar nem trabalhar, porque deixará de ter de lidar com coisas materiais, para lidar somente com informações estranhas à condição das coisas. O lugar das mãos reduz-se ao dos dedos. O homem novo tecla em vez de agir. Os seus objetivos serão apenas o jogo e o prazer. Será o ócio e não o labor a trama da sua existência.” (p.44)


“A atual sociedade do positivo evita, por seu turno, qualquer forma de resistência. Ao fazê-lo, elimina as ações. Nela, são apenas diferentes estados do mesmo que dominam.” (p. 45)

Gamificação do trabalho e fim do ócio:
“O digital não põe em jogo qualquer resistência material que seja necessário superar por meio do trabalho. Por isso, com efeito, o trabalho aproxima-se do jogo. Flusser ignora o princípio de rendimento, que distorce a aproximação entre trabalho e jogo, na medida em que esvazia o jogo da sua essência lúdica para o transformar de novo em trabalho.” (p.45)

“O ócio começa onde o trabalho cessa de facto. O tempo do ócio é outro tempo. O imperativo do rendimento neoliberal transforma o tempo em tempo de trabalho. Totaliza o tempo de trabalho. A pausa é somente uma fase do tempo de trabalho. Hoje, não temos outro tempo, senão o do trabalho.” (p.45)

“Os smartphones, que prometem mais liberdade, exercem sobre nós uma coação fatal - isto é, a coação de comunicar.” (p.46)

Racionalidade algorítmica de Han:
“A palavra “digital” refere-se ao dedo, cuja função principal é contar. A cultura digital assenta nos dedos que contam. A cultura digital assenta nos dedos que contam. A história, em contrapartida, narra. Conta, narrando e não fazendo contas. O contar digital é uma categoria pós-histórica. Nem os tweets nem as informações se contam de modo a dar ligar a uma narrativa. Igualmente, a timeline (linha do tempo) não conta uma história de vida, uma biografia. Conta em termos aditivos e não narrativos. O homem digital digita no sentido de contar números e calcular constantemente. O digital absolutiza o número e o calcular.
(…)
Tudo se torna hoje enúmerável, a fim de ser possível contá-lo na linguagem do rendimento e da eficácia.” (p.47)

Verdade vs. informação:
“A ‘verdade’ de Heidegger tende a dissimular-se. Não é dada como imediatamente disponível. Devemos começar por ‘arrancá-la’ à ‘ocultação’. A negatividade da ‘ocultação’ habita o ‘coração’ da verdade. Pertence-lhe essencialmente. A verdade enquanto ‘desocultação’ está rodeada pelo oculto, do mesmo modo que a clareira está rodeada pela obscuridade da floresta. Em contrapartida, a informação é desprovida do espaço interior, da interioridade, que lhe permita retrair-se ou ocultar-se. Como diria Heidegger, não há nela o pulsar de um coração. A informação caracteriza-se pela pura positividade, pela pura exterioridade.
A informação é cumulativa e aditiva, enquanto a verdade é exclusiva e seletiva. Ao contrário da informação, não se acumula.” (p.52)

“Não há uma massa de verdade, enquanto, em contrapartida, há uma massa de informação. Na ausência de toda a negatividade, o positivo massifica-se. Dada a sua positividade, a informação distingue-se igualmente do saber.” (p.52)

Efeitos da vida no enxame - impensar por não habitar
“Hoje, já não somos camponeses, mas caçadores. Os caçadores de informação, em busca de presa, percorrem a rede com o olhar, como se a rede fosse um território de caça digital. Ao contrário dos camponeses, são móveis. Nenhum solo os obriga a fixarem-se. Não habitam.” (p. 52) 

Com a viragem digital livramo-nos da gravidade e imprevisibilidade da terra?

“Com a viragem digital em curso, abandonamos definitivamente a terra, a ordem terrestre. Libertar-nos-emos assim da gravidade e da imprevisibilidade da terra? A ausência de gravidade e a fluidez do digital não tenderão antes a lançar-nos numa situação sem suporte?” (p.64)

“A ordem terrestre assenta num fundamento estável. A sua lei chama-se nomos. (…) A ordem digital despede definitivamente o nomos da terra. (…) A ordem terrestre compõe-se de muros, fronteiras e fortalezas. E, do mesmo modo, a firmeza de “caráter” que escapa por completo ao flexível homem digital, remete para a ordem terrestre. Pelo contrário, o meio digital é como esse ‘mar’ sobre o qual não podem ‘traçar linhas estáveis’. (…) Categorias como o espírito, ação, pensamento ou verdade pertencem à ordem terrestre,” (pp. 63-64)

Conteúdo viral - reflexos de uma comunicação pós-hermenêutica:
“A comunicação digital assume a forma não só de espectro, mas também de virus. É contagiosa, porque se produz imediatamente no plano emocional ou afetivo. O contágio é uma comunicação pós-hermeneutica, que nada propriamente dá a ler ou a pensar. Não pressupõe uma leitura, porque esta só é passível de uma aceleração limitada. Uma informação ou um conteúdo, ainda que de pouca significação, pode difundir-se rapidamente na rede, como uma epidemia ou pandemia. Não é entravada pelo peso do sentido.” (p. 69)

Falência do pensamento pelo excesso de informação:
“O dilúvio de informação a que estamos hoje expostos diminui, sem dúvida, a nossa capacidade de redução ao essencial. Mas, na realidade, a negatividade da distinção e da seleção é uma parte essencial do pensamento. É por isso que o pensamento é sempre exclusivo.
Uma maior quantidade de informação não conduz necessariamente a melhores decisões. Hoje, a nossa faculdade de julgar surge debilitada pela proliferação das informações.” (p. 74)

Omissão e esquecimento como resistência ao excesso de informação:
São muitos os casos em que um menos de informação equivale a um mais. A negatividade da omissão e do esquecimento é produtiva. O aumento da informação e da comunicação não é suficiente por si só para esclarecer o mundo. E a transparência também não nos torna clarividentes. As vagas de informação, por si sós, não produzem qualquer verdade. Não nos tornam mais lúcidos perante o que é obscuro. Quanto mais cresce a difusão das informações, mais o nosso mundo se torna espectral e impenetrável. A partir de um certo ponto, a informação deixa de informar e passa a deformar, do mesmo modo que a comunicação deixa de comunicar, limitando-se a acumular.” (p.75)

O pan-ótico digital:
“No Pan-ótico digital, a confiança deixa de ser possível e já não é sequer necessária. A confiança é um ato de fé que se torna obsoleto quando as informações se tornam facilmente disponíveis.” (p. 85)

“ A possibilidade de uma protocolarização total da vida torna inteiramente caduca a confiança, que é substituida pelo controlo. Em vez do Big Brother, temos agora os big data (as grandes bases de dados). A protocolarização total, sem lacunas, da vida consuma a sociedade da transparência.” (p. 86)
“A sociedade de vigilância digital apresenta uma estrutura pan-ótica particular. O pan-ótico de Bentham compõe-se de celas isoladas umas das outras. Os detidos não podem comunicar entre si. As paredes impedem-nos de se verem. São confinados à solidão, a fim de se emendarem. Em contrapartida, os ocupantes do pan-ótico digital criam uma rede e comunicam intensivamente uns com os outros. O que torna possível o controlo total não é o isolamento espacial e comunicacional, mas a interconexão na rede e a hipercomunicação.” (p. 86)

Psicopolítica - o fim da teoria:
“A teoria é uma construção, um meio auxiliar, que compensa a falta de dados. A possibilidade de extrair esquemas de comportamento das massas a partir dos big data assinala o início de uma psicopolítica digital.” (p.91)

“ A psicopolítica digital apodera-se do comportamento social das massas, uma vez que se baseia na sua lógica inconsciente. A sociedade de vigilância digital, com acesso ao inconsciente e aos futuros comportamentos sociais de massa, adquire traços totalitários. Submete-nos à programação e ao controlo psicopolíticos. A era da biopolitica ficou para trás. Hoje avançamos rumo à era da psicopolitica digital.” (p. 92) 

Recensão

Telmo Alexandre Ferreira

Na ressaca do optimismo que envolve os consequentes “avanços” tecnológicos do meio digital, Byung-Chul Han em No Enxame, confronta o leitor com os efeitos psico-sociais provocados por um meio que, ao possibilitar a comunicação em proximidade e tempo intensificados, destituiu indivíduos e comunidades da distância relacional e empatia necessárias para a sua agência.
O estilo ensaístico de laivos poéticos não descarateriza esta obra de ser uma Teoria Crítica passível de ser entendida em moldes tradicionais idênticos aos da Escola de Frankfurt. Tal como Horkheimer (1982), Han esboça rumos teóricos que visam libertar os seres humanos das circunstâncias que os escravizam, colocando as mutações sociais a partir da tecnologia no centro da questão. Tecnologia essa que, nos tempos de Han, não é mais a analógica mas sim a digital, razão pela qual podemos afirmar que, nesta obra tratamos de uma Teoria Crítica do Digital.
Han, colocando-se numa distância suficiente para compreender os movimentos sociais e de poder nos tempos do digital, propõe no primeiro capítulo a imagem de ondas de caos (shitstorms) para caracterizar uma cronologia de acontecimentos recentes dentro das redes sociais. Contudo, para melhor compreender os modos de existência individual e relações de poder dentro destas ondas, Han conduz-nos o olhar para o seu interior, dando a ver a nossa existência como uma dentro de um Enxame.
Apresentar a imagem de um Enxame como um lugar parece um paradoxo, uma vez que esta expressão (Schwarm em alemão) designa muito mais uma situação de movimento, concentrador de um grande número de animais, que um lugar. Contudo, é exatamente esta condição paradoxal de movimento como lugar que Han pretende explorar. Podemos dar ao enxame a dimensão de lugar pois, numa visão que se aproxima da “aldeia global” o contacto com outros é tão rápido e imediato que se assemelha a viver na mesma vizinhança daqueles com quem comunicamos. Por outro lado, a rapidez do contacto, a proximidade exacerbada (desrespeito no léxico de Han) e as múltiplas diligências virtuais na quais cada um de nós se desdobra faz-nos “mover” (pelo meio digital) de forma isolada e desorientada cujas as únicas direções mais efetivas são aquelas feitas pelas correntes que arrastam todo o “Enxame”, nos seus movimentos isolados e desorientados, para outras direções.
Em suma, Han mostra-nos que, com o crescimento do meio digital, cresce a dimensão de um lugar comum a toda sociedade porém, ao mesmo tempo que este lugar concentra cada vez mais pessoas, destitui quem nela permanece de agência, espaço e tempo necessário para agir, seja singularmente ou em comunidade. Ou seja, apesar de estarmos mais próximos em termos de contacto, estamos cada vez mais isolados em aspetos de convivência e ação.
Este movimento dá-se em grande parte pelo meio em que se proporciona a proximidade comunicativa. O mesmo meio que nos torna acessíveis à comunicação com o outro é também o meio que nos convoca a reagir de forma impulsiva e exageradamente afetiva em relação à infinidade de estímulos pelos quais somos interpelados. Estas solicitações não só formam o meio como comunicamos como também enforma a relação que mantemos com o outro. Relação esta baseada no imediatismo e consequente pragmaticidade uma vez que, em primeira instância a rapidez do contacto exige uma resposta igualmente rápida e breve e que, como consequência, o pragmatismo desta relação somente nos deixa ver e dar-nos a ver na superfície. Estas relações destituem-nos assim da intimidade necessária com os outros para nos reunir e formarmos comunidade.

Como refere Han:

O mundo do homem digital mostra (…) uma topologia completamente diferente (das massas). São-lhe estranhos lugares como os estádios desportivos ou os anfiteatros - quer dizer, os lugares de reunião de massas. Os habitantes digitais da rede não se reúnem. Falta-lhes a intimidade da reunião, capaz de produzir um nós. Formam uma concentração sem reunião, uma multiplicidade sem interioridade, sem alma ou sem espírito. (p. 23)

Segundo o autor, a sociedade ocidental transitou de uma organização social por massas para uma organização por “Enxames”. Com esta transição, a reunião de pessoas passou a ser somente um aglomerado de indivíduos, destituindo-se dos poderes que uma comunidade poderia ter numa ação coletiva e concertada.
Não havendo propriamente um coletivo, uma massa de pessoas para ser explorada passa-se de um regime de dominação por classes para um regime de dominação global. É neste último regime que a competição floresce e faz com que cada sujeito seja o seu próprio explorador e explorado.

logos%20cllc

Última atualização em 9 de abril de 2025