Big%20Data

Bruno, F. et al (orgs.). (2018). Tecnopolíticas da vigilância : perspectivas da margem. Boitempo.

Destaques

Rui Alexandre Grácio [2024]

Trata-se de uma coletânea extremamente rica no seu conjunto e em que destaco os textos de Shoshana Zuboff, Antoinette Rouvroy e Thomas Berns, Fernanda Bruno 

"Tanto o desenvolvimento de novas formas de vigilância e controle quanto a experimentação de resistências e subversões que dialogam com elas formam aquilo que chamamos de “tecnopolíticas”.” p. 7

"Nesse sentido, as tecnopolíticas podem ser entendidas amplamente como uma caixa de ferramentas para os embates sociotécnicos do presente. (…) Assim, em vez de apontarmos para um cenário dominado por distopias tecnológicas, reconhecemos nas tecnopolíticas um estratégico território de disputa entre uma grande diversidade de forças e atores.” p. 8

"Designamos por perspectivas da margem a situação desde a qual pensamos as tecnopolíticas da vigilância. Pensar a partir da América Latina implica pensar desde a margem, entendida menos como região periférica do que como região liminar: ora dentro, ora fora dos agenciamentos que constituem os grandes vetores da cultura da vigilância no chamado “Norte global”; ora em consonância, ora em desacordo com a agenda crítica e as pautas de resistência vigentes nesse mesmo Norte.” p. 9

Do capítulo
Big Other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização de informação
Shoshana Zuboff

"Explorarei então a proposta de que o big data é, acima de tudo, o componente fundamental de uma nova lógica de acumulação, profundamente intencional e com importantes consequências, que chamo de capitalismo de vigilância. Essa nova forma de capitalismo de informação procura prever e modificar o comportamento humano como meio de produzir receitas e controle de mercado.” p. 18

"A partir do momento em que uma empresa está imbuída da mediação por computador, essa nova “divisão de aprendizado” se torna mais relevante do que a divisão tradicional do trabalho.” p. 21

"A divisão do aprendizado, assim como a divisão do trabalho, é sempre conformada por disputas sobre as seguintes questões: Quem participa, e como? Quem decide quem participa? O que acontece quando a autoridade falha? Na esfera do mercado, o texto eletrônico e o que se pode aprender a partir dele nunca foram nem podem ser “coisas em si”. Eles estão sempre já constituídos pelas respostas a essas questões. Em outras palavras, eles já estão incorporados no social, e suas possibilidades estão circunscritas pela autoridade e pelo poder.” p. 22

"Minha ambição neste artigo é dar início à tarefa de iluminar uma lógica emergente de acumulação hegemônica nos espaços interconectados atuais.” p. 24

"Ele escreve: “O computador cria um registro da transação [...]. Eu argumento que essas transações mediadas por computador permitiram melhorias significativas na forma como as transações são realizadas e continuarão a impactar a economia no futuro que prevemos”18 . As implicações da observação de Varian são significativas. A informatização da economia, como ele observa, é constituída por um registro persistente e contínuo dos detalhes de cada transação. (…) Diante dos novos fatos a respeito de um mercado cognoscível, Varian afirma quatro novos “usos” que se seguem a transações mediadas por computador: “extração e análise de dados”, “novas formas contratuais devido a um melhor monitoramento”, “personalização e customização” e “experimentos contínuos”20 . Cada um deles possibilita insights sobre uma lógica emergente de acumulação, a divisão de aprendizagem que ela forma e o caráter da civilização da informação para a qual ela conduz.” p. 26

"Outra maneira de dizer isso é que a Google é “formalmente indiferente” ao que os usuários dizem ou fazem, contanto que o digam e o façam de forma que o Google possa capturar e converter em dados.” p. 33

"Essas operações constituem uma nova classe de ativos: os ativos de vigilância. Os críticos do capitalismo de vigilância podem caracterizar tais ativos como “bens roubados” ou “contrabando” na medida em que foram tomados, em vez de fornecidos, e não produzem, como argumentarei a seguir, as devidas reciprocidades.” p. 40

"Varian não parece perceber que o que ele está celebrando aqui não é uma nova forma de contrato, mas sim o “des-contrato”. Sua versão de um mundo mediado pelo computador transcende o mundo conformado pelo contrato, eliminando a governança e o Estado de direito.” p. 41

"A visão de Varian dos usos de transações mediadas por computador retira a incerteza do contrato, assim como a necessidade e a própria possibilidade de se desenvolver a confiança. Outra maneira de dizer isso é que os contratos são descolados do social e repensados como processos de máquinas. A participação consensual nos valores dos quais a autoridade legítima é derivada, juntamente com o livre-arbítrio e os direitos e obrigações recíprocos, é substituída pelo equivalente universal da tornozeleira eletrônica do prisioneiro.” p. 42

"Nesse futuro projetado, a comunidade humana já fracassou. É um lugar adaptado à normalização do caos e do terror, onde os últimos vestígios de confiança há muito tempo se esvaeceram e morreram. O revigoramento humano, a partir das falhas e triunfos das afirmações da previsibilidade e do exercício da vontade em face da incerteza natural, dá lugar ao vazio da submissão perpétua. Em vez de permitir novas formas contratuais, esses arranjos descrevem o surgimento de uma nova arquitetura universal que existe em algum lugar entre a natureza e Deus, batizada por mim de Big Other. Essa nova arquitetura configura-se como um ubíquo regime institucional em rede que registra, modifica e mercantiliza a experiência cotidiana, desde o uso de um eletrodoméstico até seus próprios corpos, da comunicação ao pensamento, tudo com vista a estabelecer novos caminhos para a monetização e o lucro. O Big Other é o poder soberano de um futuro próximo que aniquila a liberdade alcançada pelo Estado de direito.” pp. 43-44. negrito meu

"O poder não pode mais ser resumido por esse símbolo totalitário de comando e controle centralizado. (…) Ao contrário do poder centralizado da sociedade de massa, não existe escapatória em relação ao Big Other. Não há lugar para estar onde o Outro também não está.
Nesse mundo do qual não existe fuga, os efeitos arrepiantes da conformidade antecipatória 73 cedem à medida que a agência mental e o autodomínio da antecipação são gradualmente submersos em um novo tipo de automatização. A conformidade antecipatória assume um ponto de origem na consciência a partir do qual é feita a escolha de se conformar, com o objetivo de evitar sanções e de camuflagem social. Isso também implica uma diferença, ou pelo menos a possibilidade de uma diferença, entre o comportamento que se deveria ter performado e o comportamento que se escolhe performar como uma solução instrumental contra o poder invasivo. No mundo do Big Other, sem rotas de fuga, a agência implicada no trabalho de antecipação é gradualmente mergulhada em um novo tipo de automaticidade – uma experiência real baseada puramente em estímulo-resposta. A conformidade não é mais um ato típico, como no século XX, de submissão em relação à massa ou ao grupo, não é mais a perda de si próprio para o coletivo produzida pelo medo ou pela compulsão, nem é mais o desejo psicológico de aceitação e pertencimento. A conformidade agora desaparece na ordem mecânica de coisas e de corpos, não como ação, mas como resultado, não como causa, mas como efeito.” p. 44-45. negrito meu

"Hannah Arendt tratou esses temas décadas atrás com uma clareza notável enquanto lamentava a transferência da nossa concepção de “pensamento” a algo que seria realizado por um “cérebro” e, portanto, possível de ser transferido para “instrumentos eletrônicos”:

A última etapa da sociedade do trabalho, a sociedade dos empregados, exige dos seus membros um completo funcionamento automático, como se a vida individual tivesse sido realmente mergulhada no ciclo vital da espécie e a única decisão ativa ainda necessária do indivíduo fosse largar tudo, por assim dizer, abandonar sua individualidade, a dor individualmente sentida e o problema de viver, e concordar com um comportamento funcional atordoado e “tranquilo”. O problema com as teorias modernas do behaviorismo não é que elas estejam erradas, mas que elas possam se tornar verdadeiras, que elas sejam a melhor conceitualização possível de certas tendências óbvias na sociedade moderna. É bem concebível que a era moderna – que começou com um surto promissor e sem precedentes de atividade humana – possa acabar na mais letal e estéril passividade que a história já conheceu.” p. 46

Essa acumulação é obtida por meio de uma declaração unilateral que se parece mais com as relações sociais de uma autoridade absolutista pré-moderna. No contexto dessa nova forma de mercado que eu chamo de capitalismo de vigilância, a hiperescala se torna uma ameaça profundamente antidemocrática.
O capitalismo de vigilância, portanto, se qualifica como uma nova lógica de acumulação, com uma nova política e relações sociais que substituem os contratos, o Estado de direito e a confiança social pela soberania do Big Other. Ele impõe um regime de conformidade baseado em recompensas e punições e administrado privadamente, sustentado por uma redistribuição unilateral de direitos. O Big Other existe na ausência de uma autoridade legítima e é em grande parte livre de detecção ou de sanções. Neste sentido, o Big Other pode ser descrito como um golpe automatizado de cima: não um coup d’État, mas sim um coup des gens. (…) Em vez de você precisar fazer perguntas, a Google deve “saber o que você deseja e lhe dizer antes que a pergunta seja feita”." p. 49 negrito meu

"O capitalismo de vigilância prospera na ignorância do público.
Essas assimetrias no conhecimento são sustentadas por assimetrias de poder. O Big Other é institucionalizado nas funções automáticas indetectáveis de uma infraestrutura global que é considerada pela maioria das pessoas como essencial para a participação social básica.” p. 50

"Essa dependência social está no cerne do projeto de vigilância. Necessidades fortemente sentidas como essenciais para uma vida mais eficaz se opõem à inclinação para resistir ao projeto de vigilância. Esse conflito produz uma espécie de entorpecimento psíquico que habitua as pessoas à realidade de serem rastreadas, analisadas, mineradas e modificadas – ou as predispõe a racionalizar a situação com cinismo resignado. (…) No mundo do capitalismo de vigilância, o pacto faustiano exigido para se “obter algo em troca” elimina os antigos emaranhados de reciprocidade e confiança em favor do ressentimento desconfiado, da frustração, da defesa ativa e/ou da dessensibilização. (…) A aposta de Varian é que o Google Now será um recurso tão vital na luta por uma vida mais eficaz que as pessoas comuns concordarão em pagar o preço das “invasões de privacidade”.” p. 51

"Como diz o relatório da Casa Branca, “existe um potencial crescente para a análise de big data ter um efeito imediato no ambiente em torno de uma pessoa ou nas decisões feitas sobre sua vida”101 . Isso é o que chamo de negócio da realidade e reflete uma evolução na fronteira da ciência de dados, indo da mineração de dados para a mineração da realidade, na qual, de acordo com Sandy Pentland, do MIT (Massachusetts Institute of Technology [Instituto de Tecnologia de Massachusetts]), sensores, telefones celulares e outros dispositivos de captura de dados fornecem os “olhos e ouvidos” de um “organismo vivo global” a partir de um “ponto de vista de Deus”.” p. 55

"Vida,  natureza e troca foram transformadas em coisas, para que pudessem ser lucrativamente compradas e vendidas. “[A] ficção da mercadoria”, ele escreveu, “menosprezou o fato de que deixar o destino do solo e das pessoas por conta do mercado seria o mesmo que aniquilá-los.” (…) A própria realidade está passando pelo mesmo tipo de metamorfose fictícia por que passaram as pessoas, a natureza e a troca. A “realidade” é agora subjugada à mercantilização e à monetização e renasce como “comportamento”. (…) Na lógica do capitalismo de vigilância, não há indivíduos, apenas o organismo mundial e todos os elementos mais ínfimos em seu interior.” p. 56 negrito meu

"Esses desenvolvimentos tornaram-se a base para uma nova lógica de acumulação totalmente institucionalizada que chamo de capitalismo de vigilância. Nesse novo regime, a arquitetura global da mediação por computador transforma o texto eletrônico, anteriormente delimitado dentro das organizações, em um organismo global inteligente que chamo de Big Other. Novas possibilidades de subjugação são produzidas à medida que essa lógica institucional inovadora prospera em mecanismos inesperados e ilegíveis de extração e controle que exilam as pessoas de seus próprios comportamentos.” p. 58

"A renderização da civilização da informação pela Google substitui o Estado de direito e a necessidade da confiança social como base para as comunidades humanas por um novo “mundo da vida” de recompensas e punições, estímulos e respostas. O capitalismo de vigilância oferece um novo regime de fatos abrangentes e de conformidade com os fatos. É, como eu sugeri, um golpe vindo de cima – a instalação de um novo tipo de poder soberano.” p. 59

"Por fim, e o mais importante para todos os estudiosos e cidadãos, é o fato de que estamos no início da narrativa que nos levará a novas respostas. A trajetória dessa narrativa depende em grande parte dos estudiosos atraídos para esse projeto pioneiro e dos cidadãos que agem sabendo que a ignorância induzida por engano não é um contrato social e que a liberdade da incerteza não é liberdade.” p. 60

Do capítulo
Securitização, vigilância e territorialização em espaços públicos na cidade neoliberal
Rodrigo José Firmino

"O interesse presente neste trabalho concentra-se em compreender processos pelos quais certas tecnologias são apropriadas por redes sociotécnicas que definem nossa vida em sociedade e afetam nossa experiência no espaço. (…) Segundo Luque-Ayala et al., eficiência, conexão sem interrupções e o sonho do controle total tornam-se condições fundamentais para a existência de um suposto urbanismo inteligente, presente no próprio imaginário da chamada smart city.” p. 70 negrito meu

"Entretanto, desde o momento em que aprendemos a codificar coisas pela combinação de números, as tecnologias digitais parecem ter influenciado dramaticamente a maneira como interagimos entre nós mesmos, com o meio que nos envolve (inclusive o meio construído) e com as próprias tecnologias (especialmente com o recente surgimento da chamada “internet das coisas”, em que objetos podem trocar informações e dados entre si para executar tarefas e ações predefinidas, mediações algorítmicas etc.). Somos transformados em representações de uma possibilidade de ser, em números, códigos e dados em sistemas interconectados. Deleuze 4 chama de divíduos as inúmeras representações possíveis que emanam ou são abstraídas de indivíduos, o que hoje se potencializa a partir da interconexão de dados, de sistemas e do poder computacional das tecnologias disponíveis, o que foi denominado por Weiser “era da computação ubíqua”.
Haggerty e Ericsson, a partir dessa concepção deleuziana, cunharam o termo “data double” para explicar como vários divíduos possíveis são extraídos e configurados por sistemas de codificação e utilizados em contextos diversos (para classificação social, controle de acesso e fluxos, análise de crédito financeiro etc.). Identificação e identidade se distanciam pelas codificações e representações possíveis, já que quase todas as atividades e transações que sustentam o modo de vida contemporâneo são mediadas por essa desmaterialização de pessoas, ações, agenciamento, objetos e relações, em informações associadas a sistemas ou redes específicas.” p. 72

"Assim, seria o caso de entender o espaço urbano, e o próprio território, não apenas como meio mas também como ferramenta de políticas de securitização que, claramente, tem uma influência no aumento de estratégias de vigilância e securitização, criando o que Klauser 24 chama de “espaços urbanos fortificados e privatizados”.” p. 82

"Paradoxalmente, ao mesmo tempo que um urbanismo inteligente alega controle total sobre uma cidade mais inteligente, formas de territorialização informais, imperceptíveis e impostas estão, silenciosamente, ocupando e segregando várias partes intraurbanas. Uma série de arranjos sociotécnicos, apesar de existentes à margem de um suposto urbanismo inteligente, é igualmente responsável pela constituição de territórios urbanos em diferentes escalas (e segundo diferentes contextos), e a análise desse fenômeno está na base do entendimento de espacialidades e espacializações na cidade em que o espaço público se torna moeda de troca, onde o Estado está pouco presente, na cidade neoliberal.
Finalmente, a definição de limites físicos ou digitais é uma característica fundamental de territórios, e quem define e controla a porosidade dessas fronteiras exercita o controle sobre o próprio território. Novas formas de territorialização precisam ser mais bem compreendidas em tempos de “vigilância líquida”.” pp. 87-88

Do capítulo
Estado, tecnologias de segurança e normatividade neoliberal
Bruno Cardoso

"Posteriormente, para concluir, eu me concentro na apresentação do modelo de governamentalidade neoliberal, em sua estreita relação com a aquisição de infraestrutura tecnológica de segurança e controle, levando a uma adequação crescente, através de diversos meios, a uma normatividade neoliberal.” p. 93

"E, como consequência, cada vez mais o círculo vai se fechando. O Estado não apenas se compõe hibridamente com empresas, mas passa a se construir também a partir do modelo da empresa e a ter seus programas de ação desenhados e estabilizados por empresas em dispositivos sociotécnicos (softwares, principalmente, e hardwares) pensados a partir do modelo de eficiência das empresas. E, dessa forma, por meio da infraestrutura tecnológica, do modelo de ação e avaliação e do governo dos operadores estatais em suas atividades práticas diárias, por meio de programas de ação, consolida-se a governamentalidade neoliberal. E uma normatividade empresarial vai sendo imposta, de diversas maneiras, como “caminho” (quase) obrigatório.” pp. 103-104

Do capítulo
Governamentalidade algorítmica e perspectivas de emancipação: o díspar como condição de individuação pela relação?
Antoinette Rouvroy e Thomas Berns

"As novas oportunidades de agregação, análise e correlações estatísticas em meio a quantidades massivas de dados (os big data), afastando-nos das perspectivas estatísticas tradicionais do homem médio, parecem permitir “apreender” a “realidade social” como tal, de maneira direta e imanente, numa perspectiva emancipada de toda relação à “média” ou ao “normal” ou, para dizê-lo de outro modo, liberta da “norma” . “Objetividade anormativa”, ou mesmo “teleobjetividade” , o novo regime de verdade digital se encarna numa multiplicidade de novos sistemas automáticos de modelização do “social” , ao mesmo tempo a distância e em tempo real, acentuando a contextualização e a personalização automática das interações securitárias, sanitárias, administrativas, comerciais ... Aqui, interessa-nos avaliar em que medida, e com que consequências, esses usos algorítmicos da estatística, confiando em sua “teleobjetividade”, permitiriam a esses sistemas, simultaneamente, tornar-se o espelho das normatividades mais imanentes 5 à sociedade, anteriores a toda medida ou relação com a norma6 , a toda convenção, a toda avaliação, bem como contribuir para (re)produzir e multiplicar essa normatividade imanente (à própria vida, diria Canguilhem), obscurecendo, então, as normatividades sociais, tornando-as tanto possíveis quanto mudas, pois seriam intraduzíveis sob uma forma digital.” pp. 107-108

"Por governamentalidade algorítmica, nós designamos, a partir daí, globalmente um certo tipo de racionalidade (a)normativa ou (a)política que repousa sobre a coleta, a agregação e a análise automatizada de dados em quantidade massiva, de modo a modelizar, antecipar e afetar, por antecipação, os comportamentos possíveis. Se nos referimos à base geral do pensamento estatístico , os deslocamentos aparentes, que seriam produzidos atualmente pela passagem do governo estatístico ao governo algorítmico e que dariam sentido a um fenômeno de rarefação dos processos de subjetivação, são, portanto, os seguintes: antes de tudo, uma aparente individualização da estatística (com a antinomia evidente que se exprime assim), a qual não transitaria mais (ou não pareceria mais transitar) por referências ao homem médio, para dar lugar à ideia de que seria possível tornar-se a si mesmo seu próprio perfil automaticamente atribuído e evolutivo em tempo real. Em seguida, uma preocupação elevada em evitar o perigo de uma prática estatística tirânica que reduziria o objeto estatístico a “gado”, zelando para que essa prática estatística se desenvolva como se nossa concordância estivesse dada, uma vez que é na medida em que cada um de nós é único que o modo de governo pelos algoritmos pretende se dirigir a cada um, através de seu perfil. Em vez de um acordo, ou mesmo um consentimento, aquilo com que lidamos vem da adesão automática a uma normatividade tão imanente como aquela da própria vida; a prática estatística contemporânea incluiria, portanto, em si mesma, a expressão da adesão tácita dos indivíduos. Donde um possível declínio da reflexividade subjetivante e o distanciamento das ocasiões de contestação das produções de “saber” fundadas no datamining e na elaboração de perfis. A governamentalidade algorítmica não produz nenhuma subjetivação, ela contorna e evita os sujeitos humanos reflexivos, ela se alimenta de dados “infraindividuais” em si mesmos insignificantes, para criar modelos de comportamento ou perfis supraindividuais sem jamais interpelar o sujeito, sem jamais convocá-lo a dar-se conta por si mesmo daquilo que ele é, nem daquilo que ele poderia tornar-se. O momento de reflexividade, de crítica, de recalcitrância, necessário para que haja subjetivação, parece, incessantemente, complicar-se e ser adiado. É que a governamentalidade algorítmica, por sua perfeita adaptação ao “tempo real”, sua “viralidade” (quanto mais dela se serve, mais o sistema algorítmico se refina e se aperfeiçoa, uma vez que toda interação entre o sistema e o mundo se traduz por um registro de dados digitais, um enriquecimento correlativo da “base estatística” e uma melhoria da performance dos algoritmos), sua plasticidade, torna a própria noção de “falha” insignificante: a “falha” não pode, em outros termos, colocar o sistema em “crise”, ela é imediatamente reassimilada a fim de refinar ainda mais os modelos ou perfis de comportamento. Por outro lado, seguindo o objetivo do aplicativo que é feito de dispositivos algorítmicos – por exemplo, a prevenção das fraudes, do crime, do terrorismo –, os “falsos positivos” não serão nunca interpretados como “falhas”, uma vez que o sistema segue uma lógica de rastreamento mais do que de diagnóstico: o objetivo é não deixar escapar nenhum positivo verdadeiro, qualquer que seja a taxa de falsos positivos.
Certamente, não é o projeto, mesmo ampliado, de antecipar os comportamentos de maneira individual e discreta que deve, como tal, nos surpreender, nem mesmo inquietar, se convém, logo de início, sublinhar o paradoxo segundo o qual, a partir de agora, para erradicar ou minimizar a incerteza, remetemo-nos a “aparelhos” não intencionais, isto é, a máquinas a-significantes, abandonando, dessa maneira, a ambição de dar significado aos acontecimentos, que, no mais, não são tratados necessariamente como acontecimentos, uma vez que cada um pode muito bem ser decomposto em redes de dados reagregados de outros dados, independentes dos acontecimentos dos quais poderiam “atualmente” dizer algo a respeito. Assim, a governamentalidade algorítmica não para de “embaralhar as cartas”, o que nos expulsa da perspectiva “histórica” ou “genealógica” . pp. 115-117

"O governo algorítmico parece, por essa razão, assinar a conclusão de um processo de dissipação das condições espaciais, temporais e linguísticas da subjetivação e da individuação em benefício de uma regulação objetiva, operacional, das condutas possíveis, e isso a partir de “dados brutos”, em si mesmos a-significantes, cujo tratamento estatístico visa, antes de tudo, acelerar os fluxos – poupando toda forma de “desvio” ou de “suspensão reflexiva” subjetiva entre os “estímulos” e suas “respostas-reflexo”. p. 120

"Sem considerá-lo como vão, nós queremos destacar aqui a indiferença desse “governo algorítmico” para os indivíduos, já que ele se contenta em se interessar e em controlar nossa “dupla estatística”, isto é, os cruzamentos de correlações, produzidos de maneira automatizada e com base em quantidades massivas de dados, constituídas ou coletadas “automaticamente”. Em suma, quem nós somos grosso modo, para retomar a citação de Eric Schmidt, não é mais, de modo algum, nós mesmos (seres singulares). E é justamente esse o problema, problema que, como veremos, acentuaria sobretudo uma rarefação dos processos e ocasiões de subjetivação, uma dificuldade de tornar-se sujeito, e não tanto um fenômeno de “dessubjetivação” ou de risco de extinção do indivíduo.” p. 123

"Por conta desses três aspectos, a força, bem como o perigo da generalização das práticas estatísticas à qual nós assistimos, residiria não em seu caráter individual, mas, pelo contrário, em sua autonomia ou mesmo em sua indiferença para com o indivíduo.” p. 124

"A diferença em relação à normatividade jurídico-discursiva deve ser aqui sublinhada: lá onde essa normatividade estava dada, de maneira discursiva e pública, antes de toda ação sobre os comportamentos, os quais estavam, portanto, restringidos por ela (embora conservassem, sob risco de sanção, a possibilidade de não obedecer a ela), a normatividade estatística é precisamente o que não é nunca dado previamente, e que resiste a toda discursividade, é o que é incessantemente restringido pelos próprios comportamentos e que, paradoxalmente, parece tornar impossível toda forma de desobediência. p. 126

"Pensar a relação em primeiro lugar, por ela mesma, de maneira constitutiva, voltaria, em suma, a romper com o movimento vertical que nos leva do particular ao geral, qualquer que seja sua direção.
A semelhança se mostra impressionante entre os processos de produção e de transformação contínua dos perfis gerados automaticamente, em tempo real, de maneira puramente indutiva, por cruzamento automático de dados heterogêneos (datamining), e os metabolismos próprios do rizoma de Deleuze e Guattari: (…)” p. 129

"Lembremos que o estatuto da abordagem que Deleuze e Guattari chamaram de esquizoanálise, microanálise, rizomática, cartografia, era mais “estratégica” que descritiva. (…) Na era dos big data e da governamentalidade algorítmica, a metáfora do rizoma parece ter adquirido um estatuto propriamente descritivo ou diagnóstico: nós somos hoje confrontados com a atualização “material”, poderíamos dizer, do rizoma. (…) Essa “encarnação” do conceito rizomático é propícia às formas de individuação emancipadas? Três inquietações nos assombram quanto a essa questão.” p. 135

“(…) o que restaria a salvar como recurso antecedente a todo “sujeito”, a toda individuação e como constitutivo desta última – é “o comum”, entendido aqui como esse “entre”, esse lugar de presença no qual os seres se dirigem e se relatam uns aos outros em todas as suas dissimetrias, suas “disparações”. (…) Dito de outro modo, o comum necessita e pressupõe a não coincidência, pois é a partir desta que os processos de individuação ocorrem, no momento em que ela nos obriga a nos dirigirmos uns aos outros. Inversamente, o governo das relações, repousando sobre o esvaziamento de toda forma de disparidade, “monadologiza” as relações de tal modo que estas não relatam mais nada e não expressam mais nenhum comum.” p. 137

Do capítulo
O que é a governança de algoritmos?
Danilo Doneda e Virgílio A. F. Almeida.

"A complexidade do trabalho dos algoritmos aumenta com o uso cada vez maior das técnicas de aprendizagem automática. Com elas, o algoritmo é capaz de reorganizar seu funcionamento interno com base nos dados que está analisando.” p. 142

"A governança dos algoritmos pode variar desde os pontos de vista estritamente jurídico e regulatório até uma postura puramente técnica. Ela costuma priorizar a responsabilização, a transparência e as garantias técnicas. A escolha da abordagem de governança pode basear-se em fatores tais como a natureza do algoritmo, o contexto em que ele existe ou uma análise de risco10 .” p. 145

Do capítulo
Cultura da vigilância: envolvimento, exposição e ética na modernidade digital
David Lyon

"Está emergindo uma cultura da vigilância sem precedentes. Sua característica-chave é que as pessoas participam ativamente em uma tentativa de regular sua própria vigilância e a vigilância sobre outros.” p. 151

"O que se pretende dizer com essa expressão? É o sentido – como Raymond Williams poderia ter dito – de que a vigilância se torna parte de todo um modo de vida. Daí meu uso da palavra cultura. (…) O que antes era um aspecto institucional da modernidade ou um modo tecnologicamente aperfeiçoado de disciplina ou controle social hoje está internalizado e constitui parte de reflexões diárias sobre como são as coisas e do repertório de práticas cotidianas. (…) A cultura da vigilância é um produto das condições contemporâneas da modernidade tardia ou, simplesmente, da modernidade digital.” pp. 152-153

"A partir de fins do século XX, a vigilância se tornou um aspecto organizacional central das sociedades que desenvolveram infraestruturas de informação, nas quais a complexidade era gerenciada usando categorias7 . No começo do século XXI, surgiram evidências de uma “terceira fase” da computação, após o mainframe e a fase dos computadores pessoais, na qual o maquinário de computação está inserido, mais ou menos invisivelmente, nos ambientes da vida diária. Muitos se referem a isso como evidência para a “internet das coisas”, na qual o foco está nos dispositivos “smart” e em objetos capazes de se comunicar com usuários e outros aparelhos. Como veremos, isso expande, de formas específicas, o uso da vigilância como um modo de organização. Atualmente, a cultura da vigilância é formada por tais desenvolvimentos.” p. 155

"À medida que uma proporção crescente de nossas relações sociais se torna digitalmente mediada, os sujeitos são envolvidos, não meramente como alvos ou portadores de vigilância, mas como participantes cada vez mais conscientes e ativos. Isso ocorre mais claramente através das mídias sociais e do uso da internet em geral e intensificou a adoção cotidiana de uma variedade de mentalidades e práticas de vigilância.
Há dois fatores principais. O primeiro tem a ver com a aquiescência generalizada em relação à vigilância. Embora tentativas de resistir à vigilância em certos ambientes sejam relativamente comuns, na maior parte dos cenários e do tempo ela se tornou tão disseminada que a maioria a aceita sem questionar19 . Essa aliança generalizada com a vigilância contemporânea é algo que intriga aqueles que atravessaram regimes de vigilância de governos autoritários . Mas tal aquiescência pode ser explicada por meio de três fatores bastante lugares-comuns: familiaridade, medo e diversão.” p. 159

"Imaginários de vigilância são construídos pelo envolvimento cotidiano com a vigilância, bem como por reportagens e mídias populares, como o cinema e a internet. (…) Os imaginários de vigilância oferecem não apenas um sentido do que acontece – a dinâmica da vigilância – mas também um sentido de como avaliar e se envolver com ela – os deveres de vigilância. Tais imaginários, por sua vez, informam e animam as práticas de vigilância; eles funcionam juntos. (…) Explorar a cultura da vigilância atual pelas lentes de imaginários e práticas oferece novas maneiras de pensar a vigilância em geral. Isso abre uma paisagem cultural muito mais complexa do que a que pode ser capturada com os conceitos de Estado de vigilância ou sociedade de vigilância (embora não os ultrapasse) e, simultaneamente, nos leva para além de simples binários conceituais como poder-participação, in/visibilidade e privado-público.” pp. 161-162 

"A situação de hoje, diz Harcourt, é mais bem descrita como “sociedade da exposição” do que qualquer “sociedade do espetáculo” de Debord, “sociedade disciplinar” de Foucault ou “sociedade de controle” de Deleuze.” p. 166

"O consumismo libera os fluxos de desejo, agora vistos na era digital. Enquanto, para Orwell, o poder de vigilância era associado à destruição do desejo e da paixão – “o desejo era crime do pensamento” – hoje estes são os próprios facilitadores da exposição digital, os meios de vigilância. Harcourt apoia-se sobre o sonho de Deleuze e Guattari do desejo como uma “máquina” em que o inconsciente é uma fábrica produtiva. Como peças de máquinas produtoras de desejos, estamos agora ligados a outras máquinas – dispositivos digitais como iPhones, Facebook e a internet.” p. 167

"É possível reconhecer imediatamente que há muitas respostas tecnológicas, políticas e legais à vigilância, e os debates não podem ser facilmente resumidos. Mas é seguro afirmar que algo que falta amplamente – e lamentavelmente – nos muitos estudos sobre vigilância é uma atenção séria à ética, ou, é preciso dizer, à análise da ética implícita nas diferentes correntes da cultura da vigilância. (…) proponho um tipo de ética que explore as consequências reais das culturas da vigilância na vida cotidiana, e não apenas. (…) A cultura da vigilância é uma dimensão de uma transformação social, tecnológica e político-econômica altamente significativa, inevitavelmente imbricada com a modernidade digital. Se a cultura da vigilância pode ser entendida como uma questão de imaginários e práticas de vigilância, então inevitavelmente suscita questões normativas e éticas. Como afirmei antes, estas se relacionam não apenas com questões de leis e limites mas também com o que é apropriado em cada contexto e o que pode melhorar a vida humana ou permitir o florescimento humano.” pp. 171-172

"sugere-se que, para compreender os desafios éticos e políticos da modernidade digital, um conceito como o de cultura da vigilância é vital. Por quê? Porque o público dominante e os discursos acadêmicos sobre vigilância estão amparados pelas expressões Estado de vigilância e sociedade de vigilância. Nenhuma delas é adequada hoje, sobretudo porque tendem a acentuar o ponto de vista do vigilante, do agente da vigilância, e por vezes falham em dar lugar às maneiras como (o que chamamos aqui de) imaginários e práticas de vigilância produzem complacência, cumplicidade, negociação ou resistência.” p. 175

Do capítulo
Espetáculo do dividual: tecnologias do eu e vigilância distribuída nas redes sociais
Pablo Esteban Rodríguez

"A hipótese que guia essa trajetória é a seguinte: as sociedades de controle, que na interpretação de Deleuze rearticulam o triângulo vigilância-tecnologia-subjetividade, tal como Foucault o imaginou, apoiam-se num tipo de relação social nomeada pelo termo “dividual”, no qual se resumem velhos modos de interpretação da vida em sociedade (a teatralidade, o espetáculo) sob um novo território de exercício das relações de poder.” p. 182

"Mas, “na medida em que essa máscara representa o conceito que nós formamos de nós mesmos – o papel com o qual nos esforçamos para viver –, essa máscara é o nosso ‘si mesmo’ mais verdadeiro, o eu que gostaríamos de ser”.” p. 185

"Já não nos encontramos diante do par massa-indivíduo. Os indivíduos tornaram-se “dividuais”, divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou “bancos”.” p. 188

"Em que consiste a vigilância nas sociedades do controle e de que forma se relaciona com o âmbito do dividual? Segundo Deleuze31 , trata-se de uma vigilância a céu aberto, isto é, que já não precisa do encarceramento para se desenvolver. Mas, no que se refere ao nosso tema, o ponto fundamental é que o dividual como elemento central dos novos modos de subjetivação amplia consideravelmente o espectro da vigilância. A exteriorização de tudo aquilo que constituía imaginariamente um interior íntimo, privado, através de um imperativo comunicacional no qual se encenam afetos que estão entre o individual e o coletivo – precisamente porque o que se compartilha não é algo individual, ou é individual só para ser compartilhado –, se realiza por meios digitais. Isso significa que, além de ser compartilhado, tudo fica registrado e, portanto, passível de ser vigiado. Essa dupla faz o dividual, em Deleuze, vincular-se com uma transformação que Fernanda Bruno32 denomina “a vigilância distribuída e imanente”.” pp. 191-192

"Sem dúvida, a atribuição de um sujeito a um corpo e a uma pessoa permitia, em tempos disciplinares, supor uma identidade fixa, embora não fosse de todo certo. Mas, no reino do dividual, a construção de si mesmo é evidente. Essa seria uma das principais transformações dos modos contemporâneos de subjetivação.” p. 193

Do capítulo
Você é o que o Google diz que você é: a vida editável, entre controle e espetáculo
Paula Sibilia

"É muito peculiar a combinação que atualmente se dá entre estas duas vertentes: por um lado, a incitação ao espetáculo de si mesmo; por outro, os sonhos de controle total – de todos por todos e de cada um por si – com ajuda da tecnociência.” p. 210

"Nesse contexto, as reivindicações pelo “direito ao esquecimento” parecem justíssimas. Aqui emerge, porém, outra das complicações desse assunto: como consegui-lo? Como obter esse apagamento tão buscado, quando algo indevido escapole pelas entrelinhas de nossa cuidadosa curadoria existencial e estoura sem filtros?” p. 211

"O Google é um poderoso emblema desse conflito. O buscador mais usado da internet parece constituir não apenas um oráculo que tudo sabe, mas também uma instância legítima – ou, ao menos, assim legitimada, inclusive pelas instituições jurídicas mais respeitadas e poderosas do mundo – para administrar as referências pessoais de seus milhões de usuários de todo o planeta. Afinal, que dúvida pode restar? “Você é o que o Google diz que você é”, conforme afirmava o advogado citado no início deste ensaio. Por isso mesmo, tentar lhe colocar barreiras jurídicas – ou de qualquer outro tipo – pode resultar tão inócuo como problemático ou até mesmo paradoxal.
Sem dúvida, o debate continua e está longe de ter cicatrizado. No entanto, essa polêmica em torno do “direito ao esquecimento” na internet já parece indicar algo importante. (…) cabe ressaltar que a verdade tem deixado de emanar do interior de cada um, como costumávamos pensar até pouco tempo atrás. Agora ela brota do olhar alheio. Isso parece se confirmar cada vez com mais força, inclusive no que se refere a algo fundamental: quem se é, quem se tem sido e quem se poderia chegar a ser.” p. 215

Do capítulo
A América Latina e o apocalipse: ícones visuais em Blade runner e Elysium
Nelson Arteaga Botello.

"As distopias permitem dramatizar as tensões, esperanças e medos que vivem as sociedades contemporâneas34 . Além disso, elas proporcionam espaços cognitivos que permitem visualizar as morfologias da dominação e do poder35 . Propiciam cenários de resistência ao futuro, mas também projetos que buscam transformar ficção em realidade36 . Esses pontos podem contribuir, como se tentou fazer neste texto, para emoldurar mais amplamente a análise de distopias a partir da academia. Por outro lado, abrem um veio de trabalho para explorar, em séries de televisão, jogos de computador, videoclipes ou anúncios comerciais, a questão dos medos sociais do presente em face do futuro37 .” p. 232

Do capítulo
Visões maquínicas da cidade maravilhosa: do centro de operações do Rio à Vila Autódromo
Fernanda Bruno

"A cidade, nas suas diferentes escalas, é invisível para o olho humano desprovido de agenciamentos técnicos, maquínicos. Nesse sentido, toda visão da cidade é tecnicamente mediada. Tal mediação toma vastas e complexas proporções com os atuais sistemas de visualização do espaço urbano baseados em tecnologias de captura e processamento de imensos fluxos e volumes de dados1 . Tanto o planejamento quanto o imaginário urbanos são aí redesenhados segundo um modelo em que visão, gestão e controle se tornam cada vez mais misturados. Este texto explora alguns elementos dessa visão maquínica da cidade contemporânea, especialmente do Rio de Janeiro, segundo dois movimentos: sobrever 2 e antever. Um terceiro movimento – rever – adiciona-se à nossa análise e, na contramão dos anteriores, aponta para mediações tecnológicas relacionadas a outros modos de ver e habitar a cidade.” p. 239

"O exemplo permite perceber as duas assimetrias mencionadas: a de visibilidade e a de escala. Entrelaçadas, elas nos colocam numa condição bastante inquietante. A opacidade da visão algorítmica e a incomensurabilidade sensorial e cognitiva da escala tornam extremamente difícil saber precisamente onde incide o controle ou a vigilância sobre a minha ação.” p. 244

"Está em curso, nessa visão algorítmica, uma lógica do controle que deseja intervir diretamente sobre a própria ação, ou melhor, antes da ação. Como uma espécie de sismógrafo paranoide, tais máquinas alucinam cenários futuros e acionam procedimentos de controle do presente tendo em vista essa antevisão. Uma tentativa de ver adiante e agir antes ou, mais exatamente, um modo específico de gestão e controle do tempo. Essa proatividade do algoritmo é banal e corriqueira nos serviços e plataformas que utilizamos na internet.” p. 247

Do capítulo
#dronehackademy: contravisualidade aérea e ciência cidadã para o uso de Vants como tecnologia social
Pablo de Soto

"Os Vants (veículos aéreos não tripulados), também conhecidos como drones, estão revolucionando os conceitos de privacidade, fronteiras, guerra, espaço urbano e aéreo. Presentes cada vez mais tanto nos céus como na psique coletiva, estão nos fazendo questionar os limites que colocamos a essas máquinas de poder.
Em sua primeira versão, militar e de agressividade, a realidade dos drones está marcada por sua distribuição geográfica desigual. Na Faixa de Gaza, no Iêmen ou no Paquistão1 , os Vants são uma ameaça constante e letal para a integridade física da população civil há pelo menos uma década2 .” p. 257

"Com o objetivo de anteciparmos no presente os problemas do “nosso futuro drone”, imaginamos e inventamos um projeto de pesquisa que combina teoria e prática no uso dos Vants como tecnologia social, o qual batizamos de #dronehackademy8 . Como tecnologia social, nós nos referimos a uma práxis que tenha, muito seriamente, em conta uma dupla ética. Em sua dimensão maquínica, empregando e cocriando hardware e software de licenças livres, que, por sua vez, possam ser reapropriados e reaplicados: uma ética hacker9 . Em sua dimensão social, vinculando as ações materiais do projeto à ética do bem comum; condicionando o que, onde, como e com quem às ações de defesa e expansão dos bens comuns e dos direitos sociais. O interesse nessa aproximação não é inocente: é nessas brechas que surge a inovação cidadã que nos chama a atenção.” p. 260

"É com a pretensão de exercer nosso direito a olhar do céu e experimentar os usos como tecnologia social dos Vants que surge o #dronehackademy, um projeto de pesquisa que nasce para combinar, de maneira destemida e corajosa, teoria crítica e prática localizada. A proposta teórica combina os conceitos de contravisualidade de Nicholas Mirzoeff e as noções de ciência feminista de Donna Haraway. Na parte prática, com a tradição combinada de hacktivismo e ciência aberta, os participantes aprendem tanto a construir eles mesmos veículos aéreos não tripulados de código aberto como a se proteger de sua possível presença intimidadora.” p. 273

Do capítulo
Controvérsias acerca da vigilância e da visibilidade: em cena, os drones
Rosa Maria Leite Ribeiro Pedro, Ana Paula da Cunha Rodrigues, Antonio José Peixoto Costa, Cristina de Siqueira Gonçalves, Jéssica da Silva David, Luciana Santos Guilhon Albuquerque, Paulo Afonso Rheingantz e Rafael Barreto de Castro

"Para além da compreensão de que a tecnologia é imanente à sociedade, argumentamos que os dispositivos tecnológicos não são meros objetos ou instrumentos totalmente determinados pela vontade humana, mas, antes, uma rede que “faz fazer” – portanto nos mobiliza, desvia nossas ações. Ou, segundo nos ensina a Teoria Ator-Rede (TAR), os não humanos “têm agência”8 . Isso significa pensar como a sociedade se produz, tendo em vista a participação da tecnologia, e como as conexões entre atores humanos e não humanos constroem o social, produzindo ressonâncias na subjetividade.” p. 279

"A partir da cena apresentada, foi possível cartografar algumas controvérsias que vão se produzindo à medida que as conexões entre sociedade e tecnologia se complexificam. O que essas controvérsias nos permitem evidenciar? O que estamos nos tornando a partir da presença e das ações dos não humanos? Ao problematizarmos a proliferação dos drones, dois temas despontaram como importantes: a preocupação com a segurança e a publicização da privacidade.” p. 289

Do capítulo
Visível/invisível: sobre o rastreio de material genético como estratégia artístico-política
Flavia Costa

"Estamos atravessando, segundo Lyon, a passagem do que pesquisadores (incluindo ele próprio) chamavam, até fins do século XX, de “sociedade de vigilância” para uma “cultura da vigilância”. (…) A ideia de uma “cultura da vigilância” vai mais além, buscando apontar que, pouco a pouco, a vigilância vem se tornando um modo de vida, na medida em que é parte de nossa experiência cotidiana nos aeroportos e ruas da cidade, na entrada e saída dos edifícios e também dentro das casas, em smartphones e redes sociais.” pp. 293-294

Do capítulo
A dimensão forense da arquitetura: a construção estético-política da evidência (entrevista com Paulo Tavares)
Anna Bentes, Fernanda Bruno e Paulo Faltay

"A modernidade foi constituída a partir de uma relação de violência estrutural contra a natureza. Essa relação de violência e dominação opera tanto do ponto de vista epistêmico, ao sujeitar a multitude de seres viventes não humanos à categoria de objetos de apropriação do humano, quanto do ponto de vista de intervenção no território. (…) Que significa convidar a natureza para participar do contrato social como entidade detentora de “cidadania”? Aqui a questão política fundamental não é proteger a natureza, mas desestabilizar as estruturas políticas, econômicas, culturais, tecnológicas e morais que fundamentam os sistemas de conhecimento e representação da natureza, que são essencialmente coloniais.” pp. 335-336

Do capítulo
Experiências com tecnoativistas: resistências na política do dividual?
Henrique Zoqui Martins Parra

"De maneira homóloga, os criptoativistas enunciam como a privacidade, a liberdade de pensamento e expressão se encontram ameaçadas no atual contexto de crescente mediação cibernética. Ao praticar uma posição contra-hegemônica e graças ao conhecimento das especificidades sociotécnicas do funcionamento de todo o aparato de comunicação digital, esses ativistas dão existência visível para dinâmicas desconhecidas e antecipam alguns dos efeitos críticos das transformações em curso.” p. 343

"O que significa, por exemplo, “consentimento informado” quando não podemos apreender todos os problemas em jogo ou, pior, quando não temos a opção de não participação em certos ambientes tecnológicos?” p. 346

"Graças às capacidades ampliadas de gestão informacional, através da dataficação de nossas vidas, mediada pela fortíssima centralização do controle sobre plataformas corporativas e dos sistemas de vigilância dos estados nacionais, a aplicação do poder desloca-se do indivíduo para a gestão dos perfis potenciais e para a modelização dos ambientes em que a ação humana se desenvolverá.

Defender, por exemplo, a liberdade ou a privacidade individual, sem levar em conta que o essencial se deslocou para o “meio”, para a “relação”, para o ambiente onde a ação de desenrola, é perder de vista o real deslocamento das práticas de poder.” p. 351

"Com as novas tecnologias de poder, sob os novos arranjos entre estados e corporações da comunicação digital que dão forma à governamentalidade algorítmica, o livre acesso à informação e a liberdade de se comunicar confundem-se com as novas formas de servidão maquínica e sujeição social.” p. 353

Capítulo
Multidões conectadas e movimentos sociais: dos zapatistas e do hacktivismo à tomada das ruas e das redes
Guiomar Rovira Sancho

"Distinguimos então duas etapas nos usos que os movimentos sociais e a ação coletiva fazem das ferramentas de comunicação digital:
1) A etapa das redes ativistas. Da década de 1990 à primeira década dos anos 2000 (…)
2) A fase de multidões conectadas, na segunda década do século XXI.” p. 357

"O corpo se torna ciborgue em relação sinérgica com suas redes.” p. 258

"Emergem novas concepções de política emancipatória que apelam ao “comum” para designar um terceiro excluído, uma existência prévia a toda apropriação, política por natureza no sentido de ser gerenciada/produzida pelas pessoas e compartilhada: cada um é em si continuidade e parte dos demais, os que foram e os que estão; a vida não é um assunto privado, é realizada em um ambiente humano compartilhado e em um entorno ecológico do qual dependemos.” pp. 372-374

Do capítulo
Espectro livre e vigilância
Adriano Belisário Feitosa da Costa, Diego Vicentin e Paulo José O. M. Lara

#Neste capítulo, vamos tratar especificamente de uma parte elementar dessa infraestrutura: o espectro eletromagnético.” p. 377

"Em consonância com sua proposta para o teatro, Brecht 4 criticou a atrofia que o rádio sofre quando se elimina a capacidade de cada aparelho não só de receber como de transmitir informações – um tipo de funcionamento que distribui de modo desigual a capacidade de emitir sinais pelo espectro radioelétrico e de sair da posição de receptor passivo para entrar numa relação de comunicação ativa.” p. 379

"Ainda são timidamente compreendidas pela comunidade acadêmica e pela sociedade civil as potencialidades de novas formas de comunicação sem fio, como o rádio cognitivo, o rádio definido por software e outras tecnologias para compartilhamento espectral.” p. 381

"Tendo em vista as particularidades de tais experiências, bem como a polissemia da noção de espectro aberto (open spectrum), a noção de espectro livre é útil, sobretudo a fim de evitar confusões entre propostas que buscam o fortalecimento do “bem comum” (commons) e as novas iniciativas de apropriação privada e mercadológica desse recurso.” p. 392

Do capítulo
DIO: o mapeamento coletivo de câmeras de vigilância como visibilização da informatização do espaço urbano
Rafael de Almeida Evangelista, Tiago C. Soares, Sarah C. Schmidt e Felipe Lavignatti

"As câmeras de vigilância são tecnologias de uso rápido e crescente na sociedade contemporânea.” p. 395

"A tensão articulada nas relações entre poder, vigilância e liberdade é presente em momentos diversos da conformação do que, em termos amplos, é costumeiramente entendido como “cibercultura”.” p. 399

"Então se colocam algumas questões: dada a penetração dessas tecnologias de videovigilância em nossa sociedade contemporânea e a ampla, global, utilização de dispositivos portáteis de computação pessoal em rede, o que podemos desenvolver para evidenciar materialmente muitos desses equipamentos, de forma a reconhecê-los, na medida do possível, não somente em sua existência mas também em suas potencialidades? Ainda, como desnaturalizar a presença desses dispositivos de vigilância e processamento informacional no espaço urbano, de modo a discuti-los para que possamos discipliná-los socialmente? (…) Pretendemos que esse jogo seja de uso cotidiano, de modo que a circulação das pessoas (portando seus aparelhos de celular) por espaços vigiados por câmeras seja contabilizável e acessível pelo jogador.” p. 401

"Para além da denúncia e do debate público sobre a vigilância, que também são necessários, é preciso desenvolver estratégias e ferramentas que permitam à sociedade perceber sua presença e impactos na vida cotidiana e coletiva.” p. 409

logos%20cllc

Última atualização em 1 de maio de 2025