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Fernanda, B. et al (2021). “Tudo por conta própria”: autonomia individual e mediação técnica em aplicativos de autocuidado psicológico. Reciis – Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 33-54, jan./mar. 2021 [www.reciis.icict.fiocruz.br] e-ISSN 1981-6278

Destaques

Rui Alexandre Grácio [2024]

RESUMO
Este artigo discute o resultado da análise de 10 aplicativos móveis de autocuidado psicológico utilizados no Brasil, que denominamos PsiApps. A análise se desdobra em duas camadas: uma ‘visível’, que envolve os discursos dos próprios aplicativos para descrever os problemas que visam solucionar, suas promessas e seus métodos; outra ‘invisível’, que inclui formas automatizadas de coleta e compartilhamento de dados dos usuários pelos aplicativos. Veremos como a ênfase na individualidade e na autonomia manifesta na primeira camada torna opaca uma série de mediadores presentes na segunda camada, em grande parte invisíveis para o usuário. O contraste entre a centralidade da agência individual promovida pelos discursos dos PsiApps e o caráter relacional da infraestrutura e do ecossistema de dados que os integram evidenciam as contradições da autonomia ofertada por esses aplicativos.
Palavras-chave: Aplicativos móveis; App Studies; Saúde mental; Subjetividade; Economia de dados.

"Como os emergentes campos dos App Studies (GERLITZ et al., 2019; DIETER et al., 2019) e dos Software Studies (BRATTON, 2015) vêm demonstrando, aplicativos jamais são objetos autônomos e isolados, mas entidades relacionais, emaranhadas em infraestruturas de dados, modelos econômicos, conjuntos sociotécnicos, que operam em diferentes níveis.” (p. 37)

"Assim, veremos como a ênfase na dimensão individual, seja dos problemas visados, seja dos dados e informações capturados e analisados, mascara e contrasta com a natureza inerentemente relacional, mediada e heterogênea desses objetos." (p. 40)

"O que a análise de tais discursos evidencia, portanto, é que o autocuidado, concebido como um ‘treinamento de si’, visa a um aperfeiçoamento, a partir de uma autogestão otimizada, monitorada e calculada que os apps proporcionariam. A mensagem aos usuários é a de que ‘se conhecendo’, eles podem se aperfeiçoar, o que reproduz e reforça aspectos de uma racionalidade neoliberal (ROSE, 2011; FOUCAULT, 2010; EHRENBERG, 2010; BROWN, 2006), centrada em soluções individuais, o que estimula os indivíduos a buscarem continuamente a otimização de seus recursos psicológicos. (…) Deste modo, junto com outros apps de controle do tempo e da atenção, os PsiApps compõem um mercado do ‘sujeito ansioso’, no qual pessoas buscam soluções rápidas e individualizadas para dar conta de sua ansiedade e de seus efeitos negativos no trabalho, nos relacionamentos e na saúde mental.
O discurso predominante dessa camada – na maneira como enuncia os problemas, ferramentas, resultados desejáveis e modelos de bem-estar – reverbera, assim, processos ligados ao neoliberalismo, bem como uma série de modelos clínicos, psicológicos e epistemológicos que alimentam e são alimentados por uma racionalidade neoliberal.” (p. 43)

"Nesse processo, a figura do “sujeito empresarial” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 333) ou “self empreendedor” (ROSE, 2011, p. 215) emerge como aquele que se automonitora e quantifica ininterruptamente variações de humor, sintomas psicológicos e estados emocionais de modo a calcular, administrar e gerir seus problemas subjetivos. (…) Toda essa dimensão política, crítica e coletiva é esvaziada na versão tecnoliberal do autocuidado encarnada pelos PsiApps. Na esteira das ferramentas de autoajuda, a retórica neoliberal do autocuidado adiciona uma atenção maior aos limites e às fragilidades individuais, buscando ao mesmo tempo aceitá-los e superá-los por meio de investimentos em si mesmo. Os PsiApps materializam, assim, o investimento e a responsabilidade individuais como o caminho terapêutico para lidar com problemas psíquicos e emocionais sem considerar fatores coletivos, socioculturais e contextuais implicados no sofrimento individual.” (p. 44-45)

"justamente essa limitação e assimetria que o impede de conhecer não só a rede da qual faz parte, mas as implicações de sua falta de autonomia em relação ao ecossistema automatizado. (…) Ou seja, apesar de depender da contínua produção, captura e compartilhamento de dados pessoais, a dimensão individual é também no ecossistema de dados, em certa medida, ilusória ou ao menos parcial, ainda que essencial, uma vez que é a dimensão relacional aquela de fato visada por esse modelo de conhecimento e poder.” (p. 49)

"Por um lado, na camada ‘visível’, a análise dos objetos, atores e discursos presentes nas interfaces gráficas dos aplicativos e seus canais de divulgação explicitou a reverberação de um discurso neoliberal ancorado na responsabilização do indivíduo, enunciado como oferta de autonomia. Por outro, na camada ‘invisível’, o rastreamento dos fluxos de captura e compartilhamento de dados dos PsiApps deu visibilidade e materialidade aos mediadores invisíveis e à condição altamente relacional e agenciada dos aplicativos investigados.
O contraste entre a centralidade da agência individual, promovida pelos discursos dos PsiApps, e o caráter extremamente mediado e relacional da infraestrutura e do ecossistema de dados desses aplicativos aponta, assim, para as contradições do modelo de autonomia sintetizado no slogan ‘tudo por conta própria’. (…) Confrontar os discursos e modelos terapêuticos que colocam o indivíduo no controle do seu autocuidado com a materialidade e heterogeneidade dos atores e conexões agenciados na camada invisível evidenciou não apenas como os aplicativos móveis são parte da infraestrutura de uma poderosa economia de dados que se torna central para o capitalismo contemporâneo, mas também permitiu identificar processos ligados a contextos sociais, políticos e culturais mais amplos.” (p. 50)

"Problematizar tais questões não significa tomar o usuário por ingênuo. Trata-se, contudo, de enfatizar as implicações da assimetria materializada nessa rede sociotécnica entre o usuário e os atores que possuem acesso privilegiado ao ecossistema de dados.” (p. 51)

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Última atualização em 9 de abril de 2025