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Weizenbaum, J. (1991), Computer, tools and human reason. In David Crowley e Paul Heyer. Communication in History - Technology, Culture, Society. Longman, pp. 273-283.

Destaques e comentários

Telmo Ferreira [2025]

O surgimento da ciência moderna reside num truque de perceção pelo homem
Considerar que a influência das ferramentas protéticas na transformação do homem se resume ao poder que estas o permitiram acumular pode conduzir a uma visão da relação do homem com a natureza cujo principal elemento caracterizador — e quase único — seja a luta bruta pelo poder. Por este enquadramento, podemos então assumir que o homem finalmente conquistou a natureza ao ter simplesmente reunido o poder suficiente para superar o tempo e espaço naturais, para arquitetar vida e morte e, finalmente, para destruir completamente a terra. Mas esta ideia está errada, mesmo que aceitemos que o eterno sonho do homem fora não só a descoberta da natureza mas a sua conquista e que esse sonho tenha sido, em grande parte, realizado. Se a vitória sobre a natureza foi conseguida neste tempo então a natureza pela qual o homem reina é uma muito diferente daquela na qual o homem viveu antes da revolução científica. No fundo, o truque que o homem executou e que possibilitou o surgimento da ciência moderna não foi nada menos do que a transformação da natureza e da perceção da realidade pelo homem. (p. 4)

Relógio - “a máquina-chave da era industrial moderna”.
O relógio não é uma máquina protética; o que produz não é uma extensão dos músculos ou sentidos do homem mas sim horas, minutos e segundos, e, hoje, até micro —, nano—, e pico-segundos. É ao relógio, e não aos mecanismos a vapor, que Lewis Mumford (1963, p. 14) chama de “máquina-chave da era industrial moderna”. (…) [O] relógio “desassociou o tempo dos eventos humanos e ajudou a desenvolver a crença num mundo independente composto por sequências matematicamente mensuráveis: o mundo peculiar da ciência.” A importância aqui dada ao efeito que o relógio tem na perceção do homem sobre o mundo dificilmente será um exagero. A visão moderna que temos sobre o tempo está de tal forma enraizada, como uma “segunda natureza” para nós, que praticamente não somos capazes de identificar o papel que desenvolve na nossa forma de pensar. (pp. 6-7)

Importância das máquinas autónomas e seu protótipo (o relógio) no truque do surgimento da ciência moderna
Eu não menciono aqui o relógio somente porque foi uma determinante crucial para o pensamento humano (…) menciono também para mostrar que as máquinas protéticas sozinhas não explicam o aumento de poder do homem sobre a natureza. O relógio não é, com toda a certeza, uma máquina protética; ele não aumenta o poder muscular do homem nem os seus sentidos. Ele é uma máquina autónoma.
(…)
Uma máquina autónoma consiste numa máquina que, uma vez ligada, possa funcionar por si com base num modelo incorporado de algum aspeto do mundo real. Os relógios são fundamentalmente modelos do sistema planetário. São as primeiras máquinas autónomas construídas pelo homem, e até ao advento do computador, continuaram a ser as únicas que verdadeiramente importam.
Assim que o relógio começou a ser usado para ver o tempo, a regulação da vida diária do homem deixou de se basear exclusivamente, por exemplo, na posição do sol sobre certas rochas ou no cantar do galo e passou a basear-se no estado de um modelo de comportamento autónomo de um fenómeno da natureza. Os vários estados deste modelo receberam nomes e, assim, foram reificados. E todo este conjunto se sobrepôs ao mundo existente mudando a sua geografia e clima, quase ao mesmo nível de um cataclismo. O homem teria agora que desenvolver novos sentidos para se guiar. O relógio criou literalmente uma nova realidade; e era a isto que me referia quando disse que o truque que o homem executou e que possibilitou o surgimento da ciência moderna não tinha sido nada menos do que a transformação da natureza e a perceção da realidade por este. (p. 8)

O “homem-máquina” enquanto resultado de uma “inteligência sem corpo”. A rejeição da experiência direta como um dos potenciais efeitos irreversíveis do desenvolvimento de máquinas autónomas
É importante perceber que esta nova realidade criada [a partir do relógio] foi, e continua a ser, uma versão empobrecida da antiga, uma vez que esta se sustém na rejeição das experiências diretas que formaram a base para, e de facto constituíram, a realidade antiga. O sentir fome foi rejeitado como estimulo para comer e assim, em vez, passou-se a comer quando um modelo abstrato chegava a um certo estado, isto é, quando os ponteiros (hands of a clock) apontavam para certas marcas no mostrador (face) do relógio (o antropomorfismo aqui também relevante), esta mesma sinalética passou a guiar o nosso adormecer, despertar e por aí em diante.
Esta rejeição da experiência direta tornou-se uma das principais características da ciência moderna. (…) Paulatinamente numa primeira fase, depois cada vez mais rapidamente e, pode-se dizer, cada vez mais compulsivamente, as experiências da realidade passaram a ter que ser representáveis em números para parecerem legitimas aos olhos da sabedoria comum.
(…)
“O cientista tem, acima de tudo, que fazer o esforço para se auto-eliminar nos seus julgamentos,” escreveu Karl Pearson (1911, p.11) em 1892. Dos muitos cientistas que conheço, apenas muito poucos discordariam com esta afirmação. Contudo devemos reconhecer que esta noção insta o homem num esforço para se tornar numa inteligência sem corpo, para ele próprio se tornar um instrumento, uma máquina. Tão longe aquela ligação inicialmente inocente do homem com próteses e leituras de ponteiros o levou. E sob uma cultura formatada assim irrompe o computador. (pp. 8-9)

O movimento da imiscuição do computador (ou, o paradoxo da autonomia pela adição): a adesão entusiasta e acrítica a uma tecnologia de processamento de dados que estrutura a sociedade em formas dependentes desta
O computador torna-se um componente indispensável de qualquer estrutura a partir do momento em que integra de tal forma a estrutura, emaranhando-se nas várias subestruturas vitais, que já não poder ser excluído sem prejudicar fatalmente toda a estrutura. Isto é praticamente uma tautologia. A utilidade desta tautologia é despertar-nos para a possibilidade de algumas ações humanas, por exemplo, a introdução de computadores em atividades humanas complexas, poderem desembocar num compromisso irreversível. Não é verdade que o sistema bancário americano ou os mercados de ações e mercadorias ou as grandes empresas de manufactura fossem entrar em colapso caso o computador chegasse “a tempo”. A verdade é que a forma específica como estes sistemas se desenvolveram nas últimas décadas, e continuam a desenvolver-se, teria sido impossível sem o computador. A verdade é que, se todos os computadores desaparecessem subitamente, grande parte do mundo moderno, industrializado e militarizado, seria empurrado para uma gigante confusão e possivelmente um caos total. O computador não foi o pré-requisito para a sobrevivência da sociedade moderna no período pós-guerra e depois; a adesão entusiasta, acrítica pelos elementos mais “progressistas” do governo, do tecido empresarial e industrial americano é que o tornaram rapidamente num recurso essencial para a sobrevivência da sociedade numa forma fundamentalmente esculpida pelo próprio computador. (pp. 11-12)

A “incapacidade de agir” como indutor para a adesão ao desenvolvimento computacional e o questionamento dos limites da organização humana (em termos de velocidade e amplitude) como ponto base para o estabelecimento de alternativas éticas
A “incapacidade de agir” que, como Forrester nota, “tinha dado o incentivo” para aumentar ou substituir a baixa velocidade interna das organizações humanas por via de computadores poderia, em outras ocasiões históricas, ser um incentivo para modificar a tarefa a ser cumprida, talvez até dispensá-la por completo, ou para re-estruturar as organizações humanas cujas limitações inerentes eram, no fim de contas, vistas como a raiz do problema. Assim, talvez o incentivo dado pela incapacidade do exército em lidar com a crescente complexidade do conflito aéreo na década de 1950 fosse traduzida numa preocupação, não com a mobilização de técnicas que permitiriam aos militares manter as suas missões tradicionais, mas com a invenção de novas organizações humanas com novas missões, missões relevantes para questões mais importantes, como a maneira de fazer com que povos de interesses diversos convivam uns com os outros.
(…)
A fome cultivada e viciante das pessoas por automóveis particulares podia ter sido saciada ao lhes ser dada uma escolha entre, suponhamos, cem tipos de carros que realmente se diferenciassem uns dos outros, em vez da escolha entre um número astronómico de “modelos” praticamente iguais entre si e cujas diferenças são meramente triviais. Aliás, talvez o desenvolvimento automóvel privado pudesse ter sido despriorizado enquanto meio de transporte individual a favor dos transportes coletivos rodo e ferroviários e da circulação pedestre dentro das cidades.
(…)
Os serviços sociais, tais como os serviços de assistência social (welfare, na versão original), poderiam ter sido geridos por humanos que exercessem o seu julgamento humano se a concessão desses serviços fosse organizada em torno de agrupamentos populacionais descentralizados e tribos indígenas, como bairros e regiões naturais.
(…)
Sim, o computador chegou “mesmo a tempo”. Mas a tempo do quê? A tempo de salvar as estruturas sociais e políticas — deixando-as quase intactas para se enraizarem e estabilizarem — que, de outra forma, poderiam ter sido radicalmente renovadas ou deixadas a vacilar pelas exigências que certamente lhes seriam feitas. (pp. 13-14)

O ethos conservador do desenvolvimento digital.
Sim, o computador chegou “mesmo a tempo”. Mas a tempo do quê? A tempo de salvar as estruturas sociais e políticas — deixando-as quase intactas para se enraizarem e estabilizarem — que, de outra forma, poderiam ter sido radicalmente renovadas ou deixadas a vacilar pelas exigências que certamente lhes seriam feitas. Portanto, o computador foi usado para conservar as instituições sociais e políticas da América. O computador protegeu e imunizou estas instituições, pelo menos temporariamente, contra enormes pressões ou mudanças.
(…)
A invenção do computador colocou em risco uma parcela de um mundo aparentemente estável, assim é o resultado de quase todos os atos criativos do homem. E, fiel ao ditame de Dewey, ninguém poderia ter previsto o que surgiria em seu lugar. Mas, dos muitos caminhos para a inovação social que esta invenção abriu para o homem, o mais fatídico foi tornar possível ao homem a sua abstinência em relação a todo o pensamento deliberado sobre mudanças substanciais. Esse foi o rumo que o homem decidiu tomar. A chegada da Revolução Informática e a fundação da Era da Informática fora anunciada várias vezes. Mas, se o triunfo de uma revolução deve ser medido pela profundidade das revisões sociais que provoca, então não existiu nenhuma Revolução Informática. E, apesar das caracterizações que venham a ser dadas, o computador não é um epónimo desta era. (pp. 14-15)

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Última atualização em 9 de abril de 2025